segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Sapere Aude!!

Resposta à Questão: O que é Esclarecimento?

Immanuel Kant 
Tradução de Márcio Pugliesi 
mpugliesi@hotmail.com
https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitiofilosofia/article/download/11661/8392

O Esclarecimento é a libertação do homem de sua imaturidade (Unmündigkeit)¹ auto-imposta. Imaturidade é a incapacidade de empregar seu próprio entendimento sem a orientação de outro. Tal tutela é auto-imposta quando sua causa não reside em falta de razão, mas de determinação e coragem para usá-lo sem a direção de outro. Sapere Aude² ! Tenha coragem de usar sua própria mente (Verstandes)! Este é o lema do Esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a Natureza de há muito os liberou de uma direção alheia [A482] (naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom grado tutelados durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em seus tutores. É tão cômodo ser imaturo. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um pastor que tem consciência por mim, um médico que decide a respeito de minha dieta etc., então não preciso nem tentar. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar do trabalho cansativo. A maior parte da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maturidade difícil e além do mais perigosa, porque guardiões, voluntariamente, tomaram a seu cargo a sua supervisão. Depois de terem, primeiramente, estupidificado seu gado doméstico e terem certeza de que essas plácidas criaturas não ousariam dar um passo sem o andador em que as puseram, mostram-lhes o perigo que as ameaça se experimentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para intimidar os homens e atemorizá-los quanto a outras tentativas.
É muito difícil desvencilhar-se, cada homem, dessa imaturidade tornada natural [A483]. Afeiçoou-se à brida e é realmente incapaz de usar a própria mente, vez que nunca teve de tentar fazê-lo. Regras e fórmulas, esses instrumentos mecânicos do emprego racional, ou melhor, mau uso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma tutela eterna. Quem delas se livrou só conseguiria dar um salto inseguro, mesmo sobre o mais estreito fosso, porque falto de hábito de circular livremente. Portanto, são poucos os que conseguiram, pelo cultivo de suas próprias mentes se livrarem de imaturidade e obter um caminhar seguro. Mas, há maior possibilidade que um público se esclareça pois, se lhe for dada liberdade, o esclarecimento é quase certo. Sempre haverá alguns pensadores independentes, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de sacudir o jugo da imaturidade-se difundirão o espírito de uma estimativa razoável de seu próprio valor e da vocação de cada homem de pensar por si. O especial neste caso é que o público mantido, anteriormente, por eles sob o jugo, obriga-os doravante a permanecer sob esse, quando se rebela contra alguns de seus tutores, completamente incapazes de esclarecimento, isso [A484] mostra quão prejudicial é implantar preconceitos, pois esses, finalmente, voltam-se contra seus autores ou seus antecessores. Por esse motivo, um público só lentamente pode atingir o esclarecimento. Uma revolução poderá, provavelmente, realizar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão tirânica ou gananciosa, mas nunca uma reforma verdadeira na maneira de pensar. Mas, são novos preconceitos, assim como podem muito bem servir os antigos, para sujeitar a grande massa que não pensa. Para este esclarecimento porém nada mais se exige senão liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocinai! O oficial diz: não raciocinai, mas exercitai-vos! O financista: não raciocinai, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocinai, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui - por toda a parte - a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento? Qual não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público da razão deve ser sempre livre e apenas ele pode realizar [A485] o Esclarecimento entre os homens. O uso privado da razão pode, com frequencia, ser muito estreitamente limitado, sem por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento. Entendo por uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto estudioso, realiza diante de todo o mundo letrado. Denomino uso privado aquele que se pode fazer da razão em um certo cargo público (bürgerlichen Posten) ou função. 
Ora, em muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando até a sociedade burguesa mundial (Weltbürgergesellschaft), portanto na qualidade de estudioso que se dirige a um público, por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar em contrário (allerdings räsonnieren), sem que por isso sofram os negócios a que está sujeito em parte como membro passivo. Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que seu superior deu uma ordem, quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço [A486] a respeito da adequação ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto estudioso do assunto, fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que poderia causar uma insubordinação geral). Apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos catecúmenos ou à comunidade, conformemente ao credo da Igreja (Symbol der Kirche) a que serve, pois foi admitido sob essa condição. Mas, enquanto estudioso, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição dos assuntos da religião e da Igreja. Nada há aqui que possa constituir um peso em sua consciência. Pois aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como representante da Igreja, expõe-no como algo que não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor [A487] segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo e estes são os argumentos de que se serve. Extrai, então, todos os usos práticos para sua comunidade de preceitos que ele mesmo não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja escondida, mas, em todo caso, nada deve ser encontrado aí que contradiga a religião interior. Pois se acreditasse encontrar tal contradição não poderia em sã consciência desempenhar seu ofício: teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor (Lehrer) faz de sua razão diante de sua comunidade é meramente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembléia e, com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê- lo, porque executa uma incumbência alheia a si. Já como estudioso, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, ao mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de usar sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo [A488] (nas coisas espirituais) deverem ser, eles próprios, imaturos constitui um absurdo que resulta na perpetuação dos absurdos.   
Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de clérigos, ou uma venerável Classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses) ser autorizada, sob juramento, a comprometer-se com certo credo (Symbol) invariável, a fim de exercer, desse modo, uma incessante e superior tutela sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela? Digo: isso é inteiramente impossível. Tal contrato, cujo propósito seja afastar para sempre todo ulterior Esclarecimento do gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e os mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado que impossibilite a ampliação de seus conhecimentos (em particular, os mais prementes [angelegentliche]), purificar-se de seus erros e avançar a passos largos no caminho do Esclarecimento. Configurar-se-ia, assim, um crime contra a natureza humana, cujo destino original consiste precisamente neste avanço e a posteridade estaria plenamente justificada em descartar aqueles acordos não autorizados e maliciosos. A pedra de toque [A489] quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo reside na questão de saber se um povo poderia se submeter, por si mesmo, a tal lei. Isso seria possível, por tempo curto e determinado, para introduzir certa ordem, franqueando-se a qualquer cidadão, especialmente ao clero, na qualidade de estudiosos, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, suas considerações sobre possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, diante de seus votos, ainda que não unânimes, uma proposta no sentido de proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem detrimento daqueles que preferissem fidelidade às antigas. Mas é absolutamente proibido persistir em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e com isso por assim dizer anular todo um período no progresso da humanidade, e torná-lo infrutífero e destrutivo para a posteridade.
No tocante à sua pessoa [A490], um homem pode, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe compete, adiar o Esclarecimento. Mas a renúncia a esse, quer para si mesmo quer ainda mais para sua progênie, significa violar e pisotear os sagrados direitos da Humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir quanto a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade legal repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo em sua própria vontade. Cuida que toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a ordem civil, mas pode deixar seus súditos entregues a si mesmos para fazer o que julguem necessário para a salvação de suas almas. Isto não lhe diz respeito: deve apenas evitar que um súdito impeça a outro, por meios violentos, de trabalhar, com toda sua capacidade na determinação e na promoção de si. Prejudica à sua majestade quando intervém nesses assuntos, quando submete ao controle do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo se dá ao proceder assim não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos, mas, também, e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos [A491] em seu Estado contra os demais súditos. Quando se pergunta: vivemos agora uma época esclarecida? A resposta será: Não, vivemos em uma época de Esclarecimento. Ainda falta muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de compreender sem a orientação de outrem. Há, apenas, claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo em que podem trabalhar livremente e reduzirem, progressivamente, os obstáculos ao Esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua imaturidade auto-imposta. Considerada sob este aspecto, esta época é aquela do Esclarecimento ou o século de Frederico.
Um príncipe que acha digno de si dizer que considera um dever nada prescrever aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena liberdade, que afasta de si o arrogante nome de tolerância, é de fato esclarecido e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da imaturidade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas [A492] as questões de consciência. Sob seu governo os veneráveis sacerdotes podem, sem prejuízo de seu dever funcional, expor livre e publicamente, na qualidade de livres pensadores (in der Qualität der Gelehrten frei), ao mundo, para que os examinem, seus juízos e opiniões aqui e ali discordantes do credo admitido. A fortiori, isso se verifica com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Esse espírito de liberdade se difunde também no exterior, mesmo nos lugares em que se tem de lutar contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não compreende a si mesmo. Serve de exemplo luminoso o fato de que em um regime de liberdade: a tranqüilidade pública e a unidade da comunidade não são difíceis de obter. Os homens, gradualmente, elaboram-se por si mesmos afastando-se da crueldade, quando não se persiste, artificialmente, em conservá-los em tal estado. Indiquei o ponto principal do Esclarecimento, a saída do homem de sua imaturidade auto-imposta, principalmente em questões religiosas, pois no atinente às artes e ciências nossos governantes não se interessam em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela imaturidade é entre todas a mais prejudicial e a mais degradante. Porém, o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo em relação à sua legislação [A493], não há perigo em permitir a seus súditos o uso público de sua própria razão mesmo com uma crítica franca do já dado, perante a opinião pública mundial. Um brilhante exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos. Mas só aquele que é esclarecido não tem medo de sombras e tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir a paz pública, pode dizer aquilo que não ousa um Estado livre: argumentai (Räsonniert) tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Surge aqui um padrão estranho, inesperado nos assuntos humanos, bem como em outros lugares, quando se considera o conjunto, em que quase tudo é paradoxal. Um maior grau de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, contudo, estabelece limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa. Assim, se a natureza por sob esse rígido invólucro desenvolveu o germe de que cuida ternamente, a saber, a propensão e a vocação ao pensamento livre, este atua em reverso progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna, pouco a pouco, capaz de agir livremente [A494]), e finalmente até mesmo sobre os princípios do governo, que acha benéfico para si próprio tratar o homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade.

Königsberg, Prússia, 30. Septemb. 1784.   



1 Referência implícita à questão da autonomia x heteronomia. Algumas versões falam sobre menoridade (Unreife) e maioridade (Reife).
2 - Ousa Saber! (Referência ao verso 40, Livro I, Carta 2, de Horácio Flaco).


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