Immanuel Kant
Tradução de Márcio Pugliesi
mpugliesi@hotmail.com
https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitiofilosofia/article/download/11661/8392
O Esclarecimento é a libertação do homem de sua imaturidade (Unmündigkeit)¹ auto-imposta. Imaturidade é a incapacidade de empregar seu próprio entendimento
sem a orientação de outro. Tal tutela é auto-imposta quando sua causa não reside
em falta de razão, mas de determinação e coragem para usá-lo sem a direção de
outro. Sapere Aude² ! Tenha coragem de usar sua própria mente (Verstandes)! Este
é o lema do Esclarecimento.
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos
homens, depois que a Natureza de há muito os liberou de uma direção alheia [A482]
(naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom grado tutelados durante toda
a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se
constituam em seus tutores. É tão cômodo ser imaturo. Se tenho um livro que faz as
vezes de meu entendimento, um pastor que tem consciência por mim, um médico
que decide a respeito de minha dieta etc., então não preciso nem tentar. Não tenho
necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão
em meu lugar do trabalho cansativo. A maior parte da humanidade (inclusive todo
o belo sexo) considera a passagem à maturidade difícil e além do mais perigosa,
porque guardiões, voluntariamente, tomaram a seu cargo a sua supervisão. Depois
de terem, primeiramente, estupidificado seu gado doméstico e terem certeza de
que essas plácidas criaturas não ousariam dar um passo sem o andador em que as
puseram, mostram-lhes o perigo que as ameaça se experimentarem andar sozinhas.
Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar
finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para intimidar
os homens e atemorizá-los quanto a outras tentativas.
É muito difícil desvencilhar-se, cada homem, dessa imaturidade tornada natural
[A483]. Afeiçoou-se à brida e é realmente incapaz de usar a própria mente,
vez que nunca teve de tentar fazê-lo. Regras e fórmulas, esses instrumentos mecânicos
do emprego racional, ou melhor, mau uso, de seus dons naturais, são
os grilhões de uma tutela eterna. Quem delas se livrou só conseguiria dar um
salto inseguro, mesmo sobre o mais estreito fosso, porque falto de hábito de
circular livremente. Portanto, são poucos os que conseguiram, pelo cultivo de
suas próprias mentes se livrarem de imaturidade e obter um caminhar seguro.
Mas, há maior possibilidade que um público se esclareça pois, se lhe for dada liberdade,
o esclarecimento é quase certo. Sempre haverá alguns pensadores independentes,
até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de sacudir o jugo
da imaturidade-se difundirão o espírito de uma estimativa razoável de seu próprio
valor e da vocação de cada homem de pensar por si.
O especial neste caso é que o público mantido, anteriormente, por eles sob
o jugo, obriga-os doravante a permanecer sob esse, quando se rebela contra alguns
de seus tutores, completamente incapazes de esclarecimento, isso [A484] mostra
quão prejudicial é implantar preconceitos, pois esses, finalmente, voltam-se contra
seus autores ou seus antecessores. Por esse motivo, um público só lentamente pode
atingir o esclarecimento. Uma revolução poderá, provavelmente, realizar a queda
do despotismo pessoal ou de uma opressão tirânica ou gananciosa, mas nunca uma
reforma verdadeira na maneira de pensar. Mas, são novos preconceitos, assim como
podem muito bem servir os antigos, para sujeitar a grande massa que não pensa.
Para este esclarecimento porém nada mais se exige senão liberdade. E a mais
inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um
uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de
todos os lados: não raciocinai! O oficial diz: não raciocinai, mas exercitai-vos! O
financista: não raciocinai, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocinai, mas crede!
(Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui - por toda a parte - a limitação da liberdade.
Que limitação, porém, impede o esclarecimento? Qual não o impede, e até mesmo
favorece? Respondo: o uso público da razão deve ser sempre livre e apenas ele
pode realizar [A485] o Esclarecimento entre os homens. O uso privado da razão
pode, com frequencia, ser muito estreitamente limitado, sem por isso impedir notavelmente
o progresso do esclarecimento. Entendo por uso público de sua própria
razão aquele que qualquer homem, enquanto estudioso, realiza diante de todo o
mundo letrado. Denomino uso privado aquele que se pode fazer da razão em um
certo cargo público (bürgerlichen Posten) ou função.
Ora, em muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário
um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade
devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo
governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo
menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é
sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que
esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade
total, chegando até a sociedade burguesa mundial (Weltbürgergesellschaft), portanto
na qualidade de estudioso que se dirige a um público, por meio de obras escritas
de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar em contrário
(allerdings räsonnieren), sem que por isso sofram os negócios a que está sujeito
em parte como membro passivo. Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que
seu superior deu uma ordem, quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço
[A486] a respeito da adequação ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas,
razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto estudioso do assunto, fazer
observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu
público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento
dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas
obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que
poderia causar uma insubordinação geral). Apesar disso, não age contrariamente ao
dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias
contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Do mesmo modo também
o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos catecúmenos ou à comunidade,
conformemente ao credo da Igreja (Symbol der Kirche) a que serve, pois foi admitido
sob essa condição. Mas, enquanto estudioso, tem completa liberdade, e até mesmo
o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente
examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor
suas propostas no sentido da melhor instituição dos assuntos da religião e da
Igreja. Nada há aqui que possa constituir um peso em sua consciência. Pois aquilo
que ensina em decorrência de seu cargo como representante da Igreja, expõe-no
como algo que não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está
obrigado a expor [A487] segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá
dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo e estes são os argumentos de que se serve.
Extrai, então, todos os usos práticos para sua comunidade de preceitos que ele mesmo
não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se
comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade
esteja escondida, mas, em todo caso, nada deve ser encontrado aí que contradiga
a religião interior. Pois se acreditasse encontrar tal contradição não poderia em sã
consciência desempenhar seu ofício: teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que
um professor (Lehrer) faz de sua razão diante de sua comunidade é meramente um
uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembléia e, com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê-
lo, porque executa uma incumbência alheia a si. Já como estudioso, que por meio
de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, ao mundo, o sacerdote, no
uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de usar sua própria razão e
de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo [A488] (nas coisas
espirituais) deverem ser, eles próprios, imaturos constitui um absurdo que resulta
na perpetuação dos absurdos.
Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia
de clérigos, ou uma venerável Classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses)
ser autorizada, sob juramento, a comprometer-se com certo credo (Symbol)
invariável, a fim de exercer, desse modo, uma incessante e superior tutela sobre cada
um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa
tutela? Digo: isso é inteiramente impossível. Tal contrato, cujo propósito seja afastar
para sempre todo ulterior Esclarecimento do gênero humano, é simplesmente nulo e
sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e
os mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar
a seguinte em um estado que impossibilite a ampliação de seus conhecimentos (em
particular, os mais prementes [angelegentliche]), purificar-se de seus erros e avançar
a passos largos no caminho do Esclarecimento. Configurar-se-ia, assim, um crime
contra a natureza humana, cujo destino original consiste precisamente neste avanço
e a posteridade estaria plenamente justificada em descartar aqueles acordos não autorizados
e maliciosos. A pedra de toque [A489] quanto ao que se possa estabelecer
como lei para um povo reside na questão de saber se um povo poderia se submeter,
por si mesmo, a tal lei. Isso seria possível, por tempo curto e determinado, para introduzir
certa ordem, franqueando-se a qualquer cidadão, especialmente ao clero, na
qualidade de estudiosos, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras
escritas, suas considerações sobre possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas
últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se
tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à
consideração do trono, diante de seus votos, ainda que não unânimes, uma proposta
no sentido de proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas
religiosas modificadas, embora sem detrimento daqueles que preferissem fidelidade
às antigas. Mas é absolutamente proibido persistir em uma constituição religiosa
fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o
tempo de vida de um homem, e com isso por assim dizer anular todo um período
no progresso da humanidade, e torná-lo infrutífero e destrutivo para a posteridade.
No tocante à sua pessoa [A490], um homem pode, e mesmo assim só por algum
tempo, na parte que lhe compete, adiar o Esclarecimento. Mas a renúncia a esse,
quer para si mesmo quer ainda mais para sua progênie, significa violar e pisotear
os sagrados direitos da Humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir
quanto a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua
autoridade legal repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo em
sua própria vontade. Cuida que toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida
com a ordem civil, mas pode deixar seus súditos entregues a si mesmos para fazer o
que julguem necessário para a salvação de suas almas. Isto não lhe diz respeito: deve
apenas evitar que um súdito impeça a outro, por meios violentos, de trabalhar, com
toda sua capacidade na determinação e na promoção de si. Prejudica à sua majestade
quando intervém nesses assuntos, quando submete ao controle do seu governo os
escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo
se dá ao proceder assim não só por sua própria concepção superior, com o que se
expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos, mas, também, e ainda em muito
maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo
espiritual de alguns tiranos [A491] em seu Estado contra os demais súditos.
Quando se pergunta: vivemos agora uma época esclarecida? A resposta será:
Não, vivemos em uma época de Esclarecimento. Ainda falta muito para que os
homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de compreender
sem a orientação de outrem. Há, apenas, claros indícios de que agora lhes foi
aberto o campo em que podem trabalhar livremente e reduzirem, progressivamente,
os obstáculos ao Esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua imaturidade
auto-imposta. Considerada sob este aspecto, esta época é aquela do Esclarecimento
ou o século de Frederico.
Um príncipe que acha digno de si dizer que considera um dever nada prescrever
aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena liberdade,
que afasta de si o arrogante nome de tolerância, é de fato esclarecido e merece ser
louvado pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira
vez libertou o gênero humano da imaturidade, pelo menos por parte do governo,
e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas [A492] as
questões de consciência. Sob seu governo os veneráveis sacerdotes podem, sem
prejuízo de seu dever funcional, expor livre e publicamente, na qualidade de livres
pensadores (in der Qualität der Gelehrten frei), ao mundo, para que os examinem,
seus juízos e opiniões aqui e ali discordantes do credo admitido. A fortiori, isso se
verifica com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Esse espírito de liberdade se difunde também no exterior, mesmo nos lugares em que se tem de
lutar contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não compreende
a si mesmo. Serve de exemplo luminoso o fato de que em um regime de liberdade:
a tranqüilidade pública e a unidade da comunidade não são difíceis de obter. Os homens,
gradualmente, elaboram-se por si mesmos afastando-se da crueldade, quando
não se persiste, artificialmente, em conservá-los em tal estado.
Indiquei o ponto principal do Esclarecimento, a saída do homem de sua imaturidade
auto-imposta, principalmente em questões religiosas, pois no atinente às
artes e ciências nossos governantes não se interessam em exercer a tutela sobre seus
súditos, além de que também aquela imaturidade é entre todas a mais prejudicial e
a mais degradante. Porém, o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece
a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo em relação à sua legislação
[A493], não há perigo em permitir a seus súditos o uso público de sua própria razão
mesmo com uma crítica franca do já dado, perante a opinião pública mundial. Um
brilhante exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos.
Mas só aquele que é esclarecido não tem medo de sombras e tem à mão um
numeroso e bem disciplinado exército para garantir a paz pública, pode dizer aquilo
que não ousa um Estado livre: argumentai (Räsonniert) tanto quanto quiserdes
e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Surge aqui um padrão
estranho, inesperado nos assuntos humanos, bem como em outros lugares, quando se
considera o conjunto, em que quase tudo é paradoxal. Um maior grau de liberdade civil
parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, contudo, estabelece limites
intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se
tanto quanto possa. Assim, se a natureza por sob esse rígido invólucro desenvolveu o
germe de que cuida ternamente, a saber, a propensão e a vocação ao pensamento
livre, este atua em reverso progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com
o que este se torna, pouco a pouco, capaz de agir livremente [A494]), e finalmente
até mesmo sobre os princípios do governo, que acha benéfico para si próprio tratar o
homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade.
Königsberg, Prússia, 30. Septemb. 1784.
1 Referência implícita à questão da autonomia x heteronomia. Algumas versões falam sobre menoridade (Unreife) e maioridade (Reife).
2 - Ousa Saber! (Referência ao verso 40, Livro I, Carta 2, de Horácio Flaco).
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