segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Sapere Aude!!

Resposta à Questão: O que é Esclarecimento?

Immanuel Kant 
Tradução de Márcio Pugliesi 
mpugliesi@hotmail.com
https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitiofilosofia/article/download/11661/8392

O Esclarecimento é a libertação do homem de sua imaturidade (Unmündigkeit)¹ auto-imposta. Imaturidade é a incapacidade de empregar seu próprio entendimento sem a orientação de outro. Tal tutela é auto-imposta quando sua causa não reside em falta de razão, mas de determinação e coragem para usá-lo sem a direção de outro. Sapere Aude² ! Tenha coragem de usar sua própria mente (Verstandes)! Este é o lema do Esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a Natureza de há muito os liberou de uma direção alheia [A482] (naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom grado tutelados durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em seus tutores. É tão cômodo ser imaturo. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um pastor que tem consciência por mim, um médico que decide a respeito de minha dieta etc., então não preciso nem tentar. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar do trabalho cansativo. A maior parte da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maturidade difícil e além do mais perigosa, porque guardiões, voluntariamente, tomaram a seu cargo a sua supervisão. Depois de terem, primeiramente, estupidificado seu gado doméstico e terem certeza de que essas plácidas criaturas não ousariam dar um passo sem o andador em que as puseram, mostram-lhes o perigo que as ameaça se experimentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para intimidar os homens e atemorizá-los quanto a outras tentativas.
É muito difícil desvencilhar-se, cada homem, dessa imaturidade tornada natural [A483]. Afeiçoou-se à brida e é realmente incapaz de usar a própria mente, vez que nunca teve de tentar fazê-lo. Regras e fórmulas, esses instrumentos mecânicos do emprego racional, ou melhor, mau uso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma tutela eterna. Quem delas se livrou só conseguiria dar um salto inseguro, mesmo sobre o mais estreito fosso, porque falto de hábito de circular livremente. Portanto, são poucos os que conseguiram, pelo cultivo de suas próprias mentes se livrarem de imaturidade e obter um caminhar seguro. Mas, há maior possibilidade que um público se esclareça pois, se lhe for dada liberdade, o esclarecimento é quase certo. Sempre haverá alguns pensadores independentes, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de sacudir o jugo da imaturidade-se difundirão o espírito de uma estimativa razoável de seu próprio valor e da vocação de cada homem de pensar por si. O especial neste caso é que o público mantido, anteriormente, por eles sob o jugo, obriga-os doravante a permanecer sob esse, quando se rebela contra alguns de seus tutores, completamente incapazes de esclarecimento, isso [A484] mostra quão prejudicial é implantar preconceitos, pois esses, finalmente, voltam-se contra seus autores ou seus antecessores. Por esse motivo, um público só lentamente pode atingir o esclarecimento. Uma revolução poderá, provavelmente, realizar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão tirânica ou gananciosa, mas nunca uma reforma verdadeira na maneira de pensar. Mas, são novos preconceitos, assim como podem muito bem servir os antigos, para sujeitar a grande massa que não pensa. Para este esclarecimento porém nada mais se exige senão liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocinai! O oficial diz: não raciocinai, mas exercitai-vos! O financista: não raciocinai, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocinai, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui - por toda a parte - a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento? Qual não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público da razão deve ser sempre livre e apenas ele pode realizar [A485] o Esclarecimento entre os homens. O uso privado da razão pode, com frequencia, ser muito estreitamente limitado, sem por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento. Entendo por uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto estudioso, realiza diante de todo o mundo letrado. Denomino uso privado aquele que se pode fazer da razão em um certo cargo público (bürgerlichen Posten) ou função. 
Ora, em muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando até a sociedade burguesa mundial (Weltbürgergesellschaft), portanto na qualidade de estudioso que se dirige a um público, por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar em contrário (allerdings räsonnieren), sem que por isso sofram os negócios a que está sujeito em parte como membro passivo. Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que seu superior deu uma ordem, quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço [A486] a respeito da adequação ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto estudioso do assunto, fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que poderia causar uma insubordinação geral). Apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos catecúmenos ou à comunidade, conformemente ao credo da Igreja (Symbol der Kirche) a que serve, pois foi admitido sob essa condição. Mas, enquanto estudioso, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição dos assuntos da religião e da Igreja. Nada há aqui que possa constituir um peso em sua consciência. Pois aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como representante da Igreja, expõe-no como algo que não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor [A487] segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo e estes são os argumentos de que se serve. Extrai, então, todos os usos práticos para sua comunidade de preceitos que ele mesmo não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja escondida, mas, em todo caso, nada deve ser encontrado aí que contradiga a religião interior. Pois se acreditasse encontrar tal contradição não poderia em sã consciência desempenhar seu ofício: teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor (Lehrer) faz de sua razão diante de sua comunidade é meramente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembléia e, com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê- lo, porque executa uma incumbência alheia a si. Já como estudioso, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, ao mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de usar sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo [A488] (nas coisas espirituais) deverem ser, eles próprios, imaturos constitui um absurdo que resulta na perpetuação dos absurdos.   
Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de clérigos, ou uma venerável Classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses) ser autorizada, sob juramento, a comprometer-se com certo credo (Symbol) invariável, a fim de exercer, desse modo, uma incessante e superior tutela sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela? Digo: isso é inteiramente impossível. Tal contrato, cujo propósito seja afastar para sempre todo ulterior Esclarecimento do gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e os mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado que impossibilite a ampliação de seus conhecimentos (em particular, os mais prementes [angelegentliche]), purificar-se de seus erros e avançar a passos largos no caminho do Esclarecimento. Configurar-se-ia, assim, um crime contra a natureza humana, cujo destino original consiste precisamente neste avanço e a posteridade estaria plenamente justificada em descartar aqueles acordos não autorizados e maliciosos. A pedra de toque [A489] quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo reside na questão de saber se um povo poderia se submeter, por si mesmo, a tal lei. Isso seria possível, por tempo curto e determinado, para introduzir certa ordem, franqueando-se a qualquer cidadão, especialmente ao clero, na qualidade de estudiosos, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, suas considerações sobre possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, diante de seus votos, ainda que não unânimes, uma proposta no sentido de proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem detrimento daqueles que preferissem fidelidade às antigas. Mas é absolutamente proibido persistir em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e com isso por assim dizer anular todo um período no progresso da humanidade, e torná-lo infrutífero e destrutivo para a posteridade.
No tocante à sua pessoa [A490], um homem pode, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe compete, adiar o Esclarecimento. Mas a renúncia a esse, quer para si mesmo quer ainda mais para sua progênie, significa violar e pisotear os sagrados direitos da Humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir quanto a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade legal repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo em sua própria vontade. Cuida que toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a ordem civil, mas pode deixar seus súditos entregues a si mesmos para fazer o que julguem necessário para a salvação de suas almas. Isto não lhe diz respeito: deve apenas evitar que um súdito impeça a outro, por meios violentos, de trabalhar, com toda sua capacidade na determinação e na promoção de si. Prejudica à sua majestade quando intervém nesses assuntos, quando submete ao controle do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo se dá ao proceder assim não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos, mas, também, e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos [A491] em seu Estado contra os demais súditos. Quando se pergunta: vivemos agora uma época esclarecida? A resposta será: Não, vivemos em uma época de Esclarecimento. Ainda falta muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de compreender sem a orientação de outrem. Há, apenas, claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo em que podem trabalhar livremente e reduzirem, progressivamente, os obstáculos ao Esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua imaturidade auto-imposta. Considerada sob este aspecto, esta época é aquela do Esclarecimento ou o século de Frederico.
Um príncipe que acha digno de si dizer que considera um dever nada prescrever aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena liberdade, que afasta de si o arrogante nome de tolerância, é de fato esclarecido e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da imaturidade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas [A492] as questões de consciência. Sob seu governo os veneráveis sacerdotes podem, sem prejuízo de seu dever funcional, expor livre e publicamente, na qualidade de livres pensadores (in der Qualität der Gelehrten frei), ao mundo, para que os examinem, seus juízos e opiniões aqui e ali discordantes do credo admitido. A fortiori, isso se verifica com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Esse espírito de liberdade se difunde também no exterior, mesmo nos lugares em que se tem de lutar contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não compreende a si mesmo. Serve de exemplo luminoso o fato de que em um regime de liberdade: a tranqüilidade pública e a unidade da comunidade não são difíceis de obter. Os homens, gradualmente, elaboram-se por si mesmos afastando-se da crueldade, quando não se persiste, artificialmente, em conservá-los em tal estado. Indiquei o ponto principal do Esclarecimento, a saída do homem de sua imaturidade auto-imposta, principalmente em questões religiosas, pois no atinente às artes e ciências nossos governantes não se interessam em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela imaturidade é entre todas a mais prejudicial e a mais degradante. Porém, o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo em relação à sua legislação [A493], não há perigo em permitir a seus súditos o uso público de sua própria razão mesmo com uma crítica franca do já dado, perante a opinião pública mundial. Um brilhante exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos. Mas só aquele que é esclarecido não tem medo de sombras e tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir a paz pública, pode dizer aquilo que não ousa um Estado livre: argumentai (Räsonniert) tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Surge aqui um padrão estranho, inesperado nos assuntos humanos, bem como em outros lugares, quando se considera o conjunto, em que quase tudo é paradoxal. Um maior grau de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, contudo, estabelece limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa. Assim, se a natureza por sob esse rígido invólucro desenvolveu o germe de que cuida ternamente, a saber, a propensão e a vocação ao pensamento livre, este atua em reverso progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna, pouco a pouco, capaz de agir livremente [A494]), e finalmente até mesmo sobre os princípios do governo, que acha benéfico para si próprio tratar o homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade.

Königsberg, Prússia, 30. Septemb. 1784.   



1 Referência implícita à questão da autonomia x heteronomia. Algumas versões falam sobre menoridade (Unreife) e maioridade (Reife).
2 - Ousa Saber! (Referência ao verso 40, Livro I, Carta 2, de Horácio Flaco).


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Aula 2 - 3º ano - Mito da caverna




Texto: A alegoria da caverna – A República (514a-517c) 


Sócrates: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo. Glauco: Entendo Sócrates: Então, ao longo desse pequeno muro, imagine homens que carregam todo o tipo de objetos fabricados, ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns falam, outros se calam.

Glauco: Estranha descrição e estranhos prisioneiros!

Sócrates: Eles são semelhantes a nós. Primeiro, você pensa que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que as sombras de si mesmos e dos vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente?

Glauco: Como isso seria possível, se durante toda a vida eles estão condenados a ficar com a cabeça imóvel?

Sócrates: Não acontece o mesmo com os objetos que desfilam?

Glauco: É claro.

Sócrates: Então, se eles pudessem conversar, não acha que, nomeando as sombras que vêem, pensariam nomear seres reais?

Glauco: Evidentemente.

Sócrates: E se, além disso, houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam ao longo do pequeno muro falasse, não acha que eles tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua frente?

Glauco: Sim, por Zeus. Sócrates: Assim sendo, os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados.

Glauco: Não poderia ser de outra forma.

Sócrates: Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas correntes e curados de sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras anteriormente. Na sua opinião, o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?

Glauco: Certamente, elas lhe pareceriam mais verdadeiras.

Sócrates: E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram?

Glauco: Sem dúvida alguma.

Sócrates: E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros.

Glauco: Ele não poderá vê-los, pelo menos nos primeiros momentos.

Sócrates: É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol.

Glauco: Sem dúvida.

Sócrates: Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é.

Glauco: Certamente.

Sócrates: Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.

Glauco: É indubitável que ele chegará a essa conclusão.

Sócrates: Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles?

Glauco: Claro que sim.

Sócrates: Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá?

Glauco: Concordo com você. Ele aceitaria qualquer provação para não viver como se vive lá.

Sócrates: Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?

Glauco: Naturalmente.

Sócrates: E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam?

Glauco: Sem dúvida alguma, eles o matariam.

Sócrates: E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos anteriormente. Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a idéia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.

Glauco: Tanto quanto sou capaz de compreender-te, concordo contigo.

Referência: A Alegoria da caverna: A Republica, 514a-517c tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré- socráticos a Wittgenstein. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Escola sem partido ou sem pensamento crítico?

O que perde a juventude sem Filosofia em sala de aula

Tornar opcional o ensino de Filosofia corresponde a tirar dos estudantes a disciplina mais adequada para ajudá-los a pensar sobre o que os torna verdadeiramente humanos

Na próxima semana o Senado tratará da Medida Provisória referente à reforma do Ensino Médio. Na MP está em questão tornar opcional o ensino de Filosofia (bem como de outras disciplinas) e, como o Senado tem a prerrogativa de propor emendas à MP, ainda vale tentar obter alguma clareza no debate, apostando na capacidade de lucidez e ponderação dos senhores senadores.
Certamente uma das razões para desobrigar do ensino de Filosofia é uma razão econômica, embora seja irrisória a quantidade de dinheiro público que será poupada com o corte de professores e de aulas dessa disciplina (maior será o dano social à vida dos profissionais e dos estudantes). Outra razão é burocrática e refere-se à menção explícita de nomes de disciplinas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Outra razão, enfim, é mais séria e, vistos os debates que têm ocorrido em nosso país durante os últimos dois anos, ela parece ser o principal motor para desobrigar do ensino de Filosofia: trata-se de uma razão sócio-ideológica que diz respeito à preocupação de setores da sociedade brasileira com a “doutrinação comunista e ateia” que seria praticada nas aulas de Filosofia.
Dito dessa maneira, tudo parece uma caricatura. Na realidade, porém, não há nada de caricatural. Essa razão foi levantada por vários deputados e senadores, além de representantes da sociedade civil. Professores de Filosofia seriam marxistas, militantes petistas, anticristãos, adeptos do casamento homossexual, abortistas, anticapitalistas, contrários à meritocracia e outras coisas mais.
Assim, para além das simpatias e dos ódios, é necessário e urgente perguntar: esse diagnóstico corresponde à realidade? Seriam todos os professores de Filosofia comunistas e ateus? Seria realmente um ganho para a história mental de nosso país tornar opcional o ensino de Filosofia?
Num momento histórico em que muitas pessoas redescobrem a importância do pensamento filosófico (quando mesmo grandes empresas têm valorizado profissionais dotados de conhecimentos filosóficos, porque são capazes de análises mais globais e de pensamentos mais complexos), urge perguntar por que o Brasil pretende frear a ampliação da cultura filosófica em vez de acelerá-la? Aliás, outros países da América Latina também têm puxado o mesmo freio, o que faz pensar que a verdadeira razão para desobrigar do ensino de Filosofia talvez venha do medo de velhos fantasmas como o comunismo, a destruição do cristianismo, o ataque contra os valores da família etc.
Um parêntese histórico curioso: os partidos de direita e de centro-direita fazem hoje o que setores da esquerda fizeram no passado e fazem também atualmente. Refiro-me a todos aqueles de esquerda que são contra o ensino de Filosofia  porque, como dizem, “diante da falta de professores em alguns locais, quem dará as aulas serão padres, pastores, historiadores e gente com qualquer diploma universitário”. Hoje os membros da direita dizem que quem dá as aulas são “marxistas, comunistas, petistas, ateus, gays, lésbicas e assim por diante”.
Indo ao núcleo dessa preocupação, é urgente perguntar se esse diagnóstico corresponde à realidade. E a resposta para essa questão é redondamente negativa.
Tenho conhecimento de causa, não apenas pelo trabalho na universidade em que leciono, mas também pela observação in loco em vários pontos do Brasil. Atendo-me apenas ao ponto talvez mais sensível, o aspecto religioso, posso afirmar que o maior número de professores de Filosofia do Ensino Médio é de pessoas religiosas ou agnósticas (pessoas que não se dedicam nem a afirmar nem a negar a existência de Deus e têm grande respeito pelas pessoas religiosas). Talvez por motivos sociais (o crescimento das religiões cristãs evangélicas e de setores do cristianismo católico, do budismo, das religiões africanas e outras religiões), o fato é que a maioria dos professores nos vários pontos que tenho visitado de norte a sul é uma maioria religiosa ou respeitosa da religião. Do ponto de vista político, muitas delas são inclusive de direita ou de centro-direita, muito longe de serem petistas.
Obviamente, quando faz parte do programa curricular o estudo de pensadores ateus, todos são obrigados a lê-los, inclusive os professores religiosos. Nesse aspecto, o que conta é a importância desses filósofos para a história do pensamento; não se pode querer evitá-los como se tivéssemos o direito de “proteger” os estudantes ocultando deles a verdade histórica. Ademais, a prática de ler pensadores ateus pode converter-se em um excelente exercício de reflexão que pode ajudar os estudantes a amadurecer sua fé religiosa, pondo-a em teste, e mesmo a intensificá-la.
Queremos ou não queremos formar cidadãos livres, responsáveis e construtores de uma sociedade respeitosa e democrática? Se esse é um dos objetivos centrais da educação, filtrar aquilo que chegará aos estudantes, deixando a Filosofia em segundo plano e ao gosto das possibilidades “opcionais”, significa atacar a única disciplina que, no contexto atual, levanta a pergunta pelo sentido dos saberes, das práticas, das artes, da religião, enfim, dos vários aspectos da existência.
O caso do falso debate entre criacionismo eciência
Para dar um exemplo mais concreto do bem que a formação filosófica pode fazer mesmo a pessoas religiosas, evoco aqui uma experiência que vivi quando lecionei no Ensino Médio (e que constantemente se repete na universidade): um grupo de estudantes estava muito angustiado depois de algumas aulas de Biologia, pois haviam estudado a teoria do Big Bang ou do que se chama em geral de “a grande explosão” que teria ocorrido nos inícios do Universo, e o professor de Biologia teria afirmado que a teoria do Big Bang provava a inexistência de Deus.
A ocasião não podia ser melhor para que eu atuasse como professor de Filosofia. A primeira coisa que propus em aula foi estudar o modo como se constrói o conhecimento em Biologia e nas ciências em geral, avaliando sobretudo a base que permite construir conceitos como iníciocausafimfinitoinfinito, além de debater o que significa uma teoria e mesmo a verdade em ciência. Alguns estudantes quiseram logo tirar a conclusão de que o professor de Biologia estava errado, porque perceberam não apenas que nenhum cientista pode ter a pretensão de dizer que “viu” ou experimentou a infinitude do Universo (mesmo que ele seja infinito), mas também que não há a menor condição de provar cientificamente a inexistência nem a existência de um ser criador. Mesmo que haja evidências em um sentido ou outro, nunca haverá provas propriamente ditas. Outros estudantes, porém, estavam realmente abalados, porque percebiam que o discurso científico é extremamente bem construído e baseia-se em dados que podem ser debatidos e testados por todos os que se instruem nas regras desse discurso.
Depois de várias aulas de reflexão, de leitura de textos de Filosofia da Ciência, de Teoria do Conhecimento e de Filosofia da Religião, o ganho foi enorme, principalmente porque a conclusão mais adequada e mais lúcida era a de que a teoria do Big Bang não anula a fé na criação e que tampouco a fé na criação impede de adotar a teoria do Big Bang.
O dado comum percebido por todos era o de que o debate “criacionismo versus eternidade ou infinitude do Universo” é um falso debate, fundamentado no erro de tomar o criador do Universo por uma “parte” do mesmo Universo (e, por conseguinte, passível de ser provado ou não). Tanto os estudantes religiosos se apegavam a uma visão demasiado infantil do criador, como o professor de Biologia também era imaturo ao achar que sua briga era com aquele criador infantil. O erro conceitual do professor era explícito: ele tratava o ser divino como uma parte do mundo, querendo submetê-lo às leis da Física, da Química e da Biologia, em vez de entender que o ser divino, para ser tratado adequadamente, deve ser visto como transcendente ao mundo e suas leis.O mesmo erro era cometido pelos estudantes, pois, ao defendê-lo, o reduziam a uma parte do mundo e traíam sua transcendência.
Trocando em miúdos, o Universo pode ter surgido de uma explosão inicial, pode ter sempre existido, pode caminhar para um fim ou para a eternidade. Nenhuma dessas teorias impede pensar que um ser divino criador está no fundamento do Universo. Nunca será irracional crer que há um porquê para o dinamismo cósmico, pois provar a irracionalidade dessa crença exigiria provar o absurdo de seu fundamento mesmo, o ser divino, que, por definição, não é parte do mundo, não estando, portanto, sujeito a nenhum tipo de prova. Crer ou não crer são atitudes que envolvem não apenas o pensamento, mas também o sentimento (especificamente o sentimento religioso, na linha do que diziam Friedrich Schleiermacher e Rudolf Otto) e a vontade.
Relegar o ensino de Filosofia à categoria de “opcional” é diminuir ou anular a possibilidade de os estudantes desenvolverem exercícios desse tipo. É construir uma visão formativa em que os saberes técnicos têm prioridade, caindo-se na ilusão de que mais aulas de Português e Matemática vão realmente fazer os estudantes pensar e exprimir-se com correção.
Nós, brasileiros de hoje, temos uma grave responsabilidade pelo tipo de mente que desejamos formar nas crianças e jovens. São eles que continuarão a construção do Brasil. Queremos um futuro com pessoas de mente aberta, respeitosa e madura ou de mente fechada, medrosa, imatura e agressiva? Caso o estudo de Filosofia se torne opcional, é óbvio que alguns estudantes continuarão a ter acesso a ela, porque frequentarão as melhores escolas; mas a imensa maioria sequer ouvirá falar dela. O que sentimos diante desse quadro? Vamos dar de ombros e deixar acontecer a construção de um país desigual, autoritário, exclusivista, violento e mentiroso?
Juvenal Savian Filho é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo
Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2017/02/o-que-perde-a-juventude-sem-filosofia-em-sala-de-aula/


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

aula 1 - Introdução à disciplina: Da utilidade da Filosofia

"Google it" é suficiente para adquirir conhecimento?


       Em tempos de reforma do ensino médio, através da canetada do governo, passou a ser necessário discutir qual é a real função das ciências humanas no ensino médio.
       Afinal uma rápida pesquisa no Google, nos fornece as informações necessárias para nos manter informados sobre os fatos da história da filosofia; e por isso parece desnecessário "gastar" tempo e dinheiro público para as ciências humanas.
       Apresentamos abaixo um artigo publicado no The guardian sobre o que a filosofia pode ensinar. 
       

A filosofia pode ensinar o que o Google não pode

 
Livre tradução e adaptação do texto publicado no jornal britânico The Guardian.



Seja com a invenção de carros sem motorista, ou nos telefones quando ligamos para o 
banco ou para uma loja: todos sabemos que os robôs estão chegando, e em muitos 
casos já estão aqui. Em 2013, economistas da Oxford University’s Martin School 
estimaram que, nos próximos 20 anos, mais de metade de todos os empregos serão 
substituídos por tecnologias inteligentes. Como essa perspectiva de uma vida auxiliada
 por robôs, é tolo negar que as crianças que estão na escola hoje entrarão num local 
de trabalho muito diferente amanhã - e isso se tiverem sorte. [...] Os futurólogos 
preveem que os trabalhos administrativos e burocráticos serão cada vez mais
 terceirizados para "máquinas", bem como os trabalhos manuais.

Diante disso, como os educadores devem preparar os jovens para a vida cívica e 
profissional numa era digital? [...] Redobrar o investimento em ciência, tecnologia, 
engenharia e matemática não vai resolver o problema, pois: o treinamento em altas 
tecnologias tem suas limitações imaginativas.

Num futuro próximo, os que abandonaram a escola precisarão de outras habilidades.
 Em um mundo onde o conhecimento técnico é cada vez mais restrito, as habilidades 
e a confiança para percorrer disciplinas será recompensado. Precisaremos de pessoas 
que estejam preparadas para perguntar e responder às perguntas que não são 
encontradas no Google, como: Quais são as ramificações éticas da automação 
das máquinas? Quais são as consequências políticas do desemprego em massa? Como 
devemos distribuir a riqueza em uma sociedade digitalizada? Como sociedade nós 
precisaremos estar mais familiarizados com a Filosofia para discutirmos tais questões. 

Em meio às incertezas políticas de 2016, o presidente irlandês Michael D Higgins 
lançou uma luz nesta área. "O ensino da filosofia", disse ele em novembro, "é uma 
das ferramentas mais poderosas que temos à nossa disposição para capacitar as 
crianças a atuar como sujeitos livres e responsáveis em um mundo cada vez 
mais complexo, interconectado e incerto". A sala de aula, ele enfatizou, oferece um
 "caminho para uma cultura democrática humanista e vibrante".

Em 2013, enquanto a Irlanda lutava contra os efeitos da crise financeira, Higgins
 lançou uma iniciativa nacional que pedia um debate sobre o que a Irlanda 
valorizava como sociedade. O resultado é que em setembro, pela primeira vez, a 
filosofia foi introduzida nas escolas irlandesas. O curso para jovens de 12 a 16 anos
 provoca os jovens a refletirem sobre questões que - até agora - estavam ausentes 
dos currículos escolares. No Reino Unido, uma rede de filósofos e professores ainda 
está tentando implantar algo parecido. E na Irlanda, uma nação que já foi considerada 
"o país mais católico", já está explorando reformas para estabelecer a filosofia para 
as crianças como um assunto dentro das escolas primárias.

Esta expansão da filosofia no currículo é algo que Higgins e sua esposa Sabina, 
graduado em filosofia, pediram expressamente. As opiniões de Higgins estão à frente
 de seu tempo. Se alguns educadores assumem que a filosofia é inútil, é justo dizer 
que muitos filósofos acadêmicos ainda são territoriais ou ignorantes sobre a viabilidade 
de tratarem do assunto para além da academia. Se por um lado os educadores 
precisam ficar sábios, por outro lado os filósofos precisam superar a si mesmos.

O pensamento e o desejo de compreender não vêm naturalmente - ao contrário do que 
Aristóteles acreditava. Diferentemente, digamos, do sexo e da fofoca, a filosofia não é 
um interesse universal. Bertrand Russell aproximou-se disso quando disse: "A maioria 
das pessoas prefere morrer do que pensar; na verdade, é isso que fazem ". Embora 
possamos todos ter a capacidade de filosofar, é uma capacidade que requer 
treinamento e "cutucões" culturais. Se a busca da ciência requer algum andaime 
cognitivo, como argumenta o filósofo norte-americano Robert McCauley, então o
 mesmo vale para a filosofia.

A filosofia é difícil. Abrange a dupla exigência de trabalho árduo e um supervisor 
sério. Isso nos obriga a superar os preconceitos pessoais e as armadilhas no raciocínio. 
Para isso é necessário o diálogo tolerante, e imaginar pontos de vista divergentes 
enquanto os avalia. A filosofia ajuda as crianças - e os adultos - a articular perguntas 
e a explorar respostas que não são facilmente extraídas pela introspecção ou pelo Twitter.
 No seu melhor, a filosofia coloca ideias, não egos, na frente e no centro. E é a própria
 fragilidade - a não-naturalidade - da filosofia que exige que ela seja incorporada, 
não apenas nas escolas, mas nos espaços públicos.

A filosofia não vai trazer de volta os trabalhos perdidos para os robôs. Não é uma cura 
para todos os problemas atuais ou futuros do mundo. Mas pode construir uma imunidade
 contra julgamentos descuidados, e certezas não avaliadas. A filosofia em nossas salas 
de aula poderia nos preparar melhor para perceber e desafiar os conhecimentos 
convencionais da nossa era. Talvez por isso não seja surpreendente que o presidente 
da Irlanda, um país que foi uma vez uma sub-teocracia, tenha entendido isso.

Fonte:
http://www.filosofianaescola.com.br/2017/01/a-filosofia-pode-ensinar-o-que-o-google.html?spref=fb&m=1


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O que é uma aula - Gilles Deleuze

Em uma parte da série de entrevistas concedidas pelo filósofo Gilles Deleuze, ele fala sobre o que é uma aula. Abaixo a transcrição de uma parte do vídeo:


"Para mim, uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical.

Numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém.

Não podemos dizer que tudo convém a todos. As pessoas têm de esperar. Obviamente, tem alguém meio adormecido. Por que ele acorda misteriosamente no momento que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém. O assunto de seu interesse é outra coisa.

Uma aula é emoção. É tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção, não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente.
É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento dos centros de interesse, que pulam de um para outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura."

Gilles Deleuze, filósofo francês.



Welcome to Emília filosofante!

      Este espaço foi criado para compartilhar textos, vídeos, curiosidades, atividades e tudo o mais relacionado a disciplina de Filosofia. Seus conteúdos estão voltados para as salas em que ministro aulas na escola Emília de Paiva Meira.
     Contudo, este blog não substitui nossas aulas, mas possibilita que possamos usá-la integralmente para a exposição de ideias e o posterior debate, ampliando assim o aprendizado. A intenção é que possamos aprofundar através deste canal os assuntos discutidos em nossas aulas.
     As postagens são direcionadas por séries e assuntos quando forem exclusivas para a continuidade de nossas aulas ou alguma proposta de atividade para nota. Mas também farei postagens de interesse de todos com assuntos diversos sobre nós e nossa atuação no mundo.

     Que nosso ano letivo possibilite nosso desenvolvimento para além da sala de aula, que nosso  aprendizado nos faça melhores para nós mesmos e para os outros.

     Conto com vocês nesta caminhada.

Professora Tatiana